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O "28º Estado" de Von der Leyen: quando os talentos europeus são obrigados a emigrar

Porque é que as empresas europeias em fase de arranque têm de se mudar para os EUA para terem êxito? Von der Leyen propõe o "28º regime": um estatuto jurídico único para operar em toda a UE sem ter de navegar por 27 regulamentos diferentes. Inspirado no modelo de Delaware, prevê a constituição de uma sociedade em 48 horas e regras unificadas em matéria de direito do trabalho, fiscal e das sociedades. Chegada prevista: início de 2026. Para as empresas italianas em fase de arranque, uma oportunidade de expansão na Europa sem emigrar.

Ursula von der Leyen abre o seu discurso na Semana Tecnológica Italiana contando uma história que dá que pensar. O ano era 2007. Dois amigos do liceu, Marco Palladino e Augusto Marietti, encontravam-se numa pequena garagem em Milão com o mínimo de conhecimentos de programação e uma ideia que consideravam vencedora. Durante três anos, percorreram toda a Itália à procura de financiamento. A resposta era sempre a mesma: demasiado jovens, um projeto demasiado arrojado, demasiado arriscado.

Por isso, fizeram as malas e partiram para São Francisco. Foram necessárias apenas duas semanas para encontrar o seu primeiro investidor. Pouco depois, a sua startup Kong tornou-se um unicórnio. No final de 2024, com uma avaliação de 2 mil milhões de dólares, estava a aparecer nos grandes ecrãs da Torre Nasdaq em Times Square. "É incrível o talento que temos em Itália e na Europa", disse Von der Leyen em italiano. "Por vezes, porém, não é suficiente.

Também é necessário um ambiente favorável. Quero uma Europa que esteja à altura dos vossos padrões".

A história de Kong não é um caso isolado. É um sintoma de um atraso estrutural que está a privar a Europa dos seus melhores talentos. E que o Presidente da Comissão Europeia tenciona combater com uma das propostas mais ambiciosas para aumentar a competitividade do Velho Continente: o chamado "28º regime", um novo quadro jurídico opcional que deverá revolucionar a forma como as empresas em fase de arranque e as PME inovadoras operam na União.

O paradoxo europeu: muitas poupanças, poucos investimentos

Os números apresentados por Von der Leyen em Turim são eloquentes. "O primeiro problema, o mais óbvio, é a falta de financiamento. E vou dizer-vos uma coisa que vos vai surpreender: não há falta de capital na Europa". As poupanças das famílias europeias ascendem a quase 1400 mil milhões de euros, contra pouco mais de 800 mil milhões nos Estados Unidos. No entanto, algo está errado: na Europa, apenas 24% da riqueza financeira das famílias é investida em acções, em comparação com 42% nos EUA.

O resultado? Um terço dos unicórnios europeus acaba por abandonar o continente. Em Itália, apesar de os investimentos em capital de risco terem aumentado 600% numa década, o número de unicórnios continua a ser reduzido. " Não podemos aceitar que os nossos talentos mais brilhantes sejam obrigados a partir para serem bem-sucedidos", afirmou Von der Leyen a partir do OGR em Turim.

Fragmentação que impede a Europa de avançar

"Vivemos numa era em que uma linha de código pode atravessar o continente num milésimo de segundo, enquanto a start-up que a criou fica retida na fronteira", afirmou o Presidente da Comissão. O mercado único está fragmentado. Demasiadas vezes é mais fácil expandir-se noutro continente do que na Europa. Lidar com 27 legislações e burocracias diferentes pode tornar-se um pesadelo."

O anúncio de Turim: chega o 28º regime

Foi neste contexto que Von der Leyen anunciou da plateia da Tech Week italiana a solução: "A Comissão está a propor uma abordagem completamente nova para mudar a forma como as empresas inovadoras operam em toda a Europa: o 28. A proposta legislativa chegará à mesa de Bruxelas no início de 2026.

"Quero que seja verdade para vós o que é verdade para uma empresa em fase de arranque de São Francisco nos EUA", afirmou, olhando para os jovens inovadores presentes no OGR. O 28.º regime deverá permitir que as empresas europeias em fase de arranque operem em toda a UE com um conjunto unificado de regras, deixando de ter de navegar entre 27 regulamentações nacionais diferentes.

O Presidente anunciou igualmente outras medidas de apoio ao ecossistema tecnológico europeu: o fundo Scaleup Europe, com investimentos multibilionários em parceria com particulares para apoiar sectores estratégicos, da IA às tecnologias quânticas, e a estratégia "AI First" para acelerar a adoção da inteligência artificial na Europa.

Mas é o 28º regime que constitui a proposta que poderá efetivamente alterar as regras do jogo. Não é certamente rasgando a nossa legislação: estas são regras acordadas que proporcionam segurança e previsibilidade. Mas precisamos de simplificar, facilitando a inovação", salientou Von der Leyen.

De Draghi a Von der Leyen: a génese da ideia

A ideia do 28.º regime que Von der Leyen anunciou em Turim não surgiu do nada. É uma das recomendações centrais do Relatório sobre a Competitividade Europeia que Mario Draghi apresentou em setembro de 2024 a pedido da própria Von der Leyen. O antigo presidente do BCE e primeiro-ministro italiano tinha identificado a fragmentação regulamentar como um dos principais obstáculos ao crescimento de empresas europeias inovadoras.

No seu relatório, Draghi recordou o facto impiedoso que Von der Leyen retomaria mais tarde nos seus discursos: não há nenhuma empresa da UE com uma capitalização bolsista superior a 100 mil milhões de euros que tenha sido criada do zero nos últimos cinquenta anos, enquanto nos Estados Unidos as histórias de sucesso se multiplicam. O problema? As empresas europeias em fase de arranque têm de lidar com 27 regulamentações nacionais diferentes, um labirinto burocrático que atrasa o crescimento e leva muitas empresas a mudarem-se para o estrangeiro.

Enrico Letta, no seu relatório sobre o mercado único intitulado "Muito mais do que um mercado", apresentado em abril de 2024, também tinha proposto esta solução: "Esta ideia de um 28º regime ou de um 28º Estado virtual visa encontrar um compromisso entre a vontade de todos os Estados-Membros de manterem as suas próprias regulamentações e a necessidade de procedimentos acelerados para os investimentos.

A proposta foi depois incluída nas agendas oficiais da Comissão. No seu discurso sobre o estado da União, proferido a 10 de setembro em Estrasburgo, Von der Leyen incluiu o 28º regime no roteiro para o mercado único até 2028, juntamente com outros objectivos, como a quinta liberdade para o conhecimento e a inovação.

O modelo de Delaware: inspiração americana

A inspiração para o 28º regime vem diretamente dos Estados Unidos e, mais especificamente, do Delaware. Este pequeno Estado da costa leste americana criou um sistema regulamentar tão favorável às empresas que 67% das empresas da Fortune 500 - da Walmart à Amazon, da ExxonMobil à Apple - optaram por se constituir neste Estado.

O sucesso do modelo de Delaware reside na sua simplicidade: um único conjunto de regras, procedimentos rápidos e eficientes, custos reduzidos. Uma empresa californiana em fase de arranque pode expandir-se e angariar fundos em todo o território dos EUA sem ter de lidar com 50 legislações estatais diferentes. Em contrapartida, como admitiu a própria Von der Leyen, "as nossas empresas inovadoras em fase de arranque têm de lidar com 27 regulamentos diferentes. Queremos propor um 28º regime que lhes dê acesso a todo o mercado único e a oportunidade de crescer".

O que prevê o 28º regime

O 28.º regime não tem por objetivo substituir as legislações nacionais, mas oferecer uma alternativa voluntária. As empresas inovadoras em fase de arranque e as PME poderão optar por se estabelecer ao abrigo deste novo estatuto jurídico europeu, beneficiando de

  • Um conjunto único de regras a nível da UE para o direito das sociedades, da insolvência, do trabalho e fiscal
  • Criação rápida de uma empresa em menos de 48 horas
  • Operar em toda a Europa com um único conjunto de regras: contratar empregados na Alemanha, vender em França, abrir um escritório em Espanha sem ter de se adaptar a novas regulamentações nacionais de cada vez
  • Normalização das opções de compra de acções pelos trabalhadores

A proposta, de acordo com o Compasso da Competitividade apresentado por Von der Leyen, deverá ser formalmente apresentada no primeiro trimestre de 2026.

O apoio do ecossistema tecnológico

A iniciativa reuniu o apoio de todos os partidos do ecossistema tecnológico europeu. A petição EU Inc, criada em 2023 para promover o 28.º regime, reuniu dezenas de milhares de assinaturas e o apoio de empresas como a Stripe, a Wise, a Revolut e a DeepL, bem como de investidores e capitalistas de risco como a Index, a Atomico, a Sequoia e a Lightspeed.

Entre os apoiantes contam-se destacados empresários do sector da tecnologia, como Niklas Zennström (fundador do Skype), Paul Graham (cofundador da Y Combinator) e Patrick Collison (Stripe). O Comissário irlandês para a Justiça, Michael McGrath, foi nomeado para liderar os trabalhos de implementação.

Os números de um atraso que já não podemos ignorar

Os dados apresentados por Von der Leyen em Turim e nos seus discursos subsequentes pintam um quadro alarmante do atraso tecnológico da Europa:

  • Unicórnios: Em meados de 2024, existiam mais de 1400 unicórnios (empresas em fase de arranque não cotadas na bolsa com uma avaliação superior a mil milhões de dólares) no mundo. Mais de metade estão nos Estados Unidos. A Europa e a China estão paradas com 14% cada.
  • Fuga de talentos: Nos últimos 15 anos, cerca de 30% dos unicórnios europeus saíram da UE, principalmente para os EUA, devido à falta de um ambiente regulamentar adequado e de financiamento suficiente.
  • Capitalização: Não há nenhuma empresa da UE com uma capitalização de mercado superior a 100 mil milhões de euros que tenha sido criada de raiz nos últimos cinquenta anos. Entretanto, só nas últimas duas décadas, os EUA criaram seis empresas tecnológicas com capitalização superior a este limite.
  • Fuga de capitais: todos os anos, 300 mil milhões de euros de poupanças dos cidadãos europeus acabam por financiar o mercado de capitais americano, que depois - paradoxalmente - as utiliza para adquirir empresas europeias.
  • Fosso de investimento: Na Europa, apenas 24% do património financeiro das famílias é investido em acções, em comparação com 42% nos EUA. As empresas europeias gastam menos 270 mil milhões de euros do que as empresas americanas em investigação e inovação.

"Sabemos que o número de unicórnios é ainda demasiado pequeno e que um terço deles acaba por deixar o nosso continente", reiterou Von der Leyen em Turim. "Este é um sinal de alerta que não podemos ignorar."

Os desafios da implementação

Apesar do amplo consenso político, o caminho para o 28º regime não será isento de obstáculos. Experiências passadas, como a da"Societas Europæa" (Sociedade Europeia), mostraram como é difícil criar instrumentos jurídicos verdadeiramente uniformes quando 27 Estados-Membros querem manter as suas prerrogativas legislativas.

A chave do sucesso, segundo os peritos, reside na abordagem voluntária: o 28.º regime não impõe alterações à legislação nacional, mas oferece uma alternativa para aqueles que querem operar à escala europeia. Trata-se de um compromisso que pode funcionar onde outras tentativas falharam.

Um elemento da estratégia de competitividade

O 28.º regime faz parte do Compasso Europeu para a Competitividade, que tem por objetivo reduzir em 25% os encargos administrativos para as empresas e em 35% para as PME. Von der Leyen declarou que "a Europa tem tudo o que precisa para ser bem sucedida na corrida para o topo. Mas, ao mesmo tempo, temos de corrigir os nossos pontos fracos para recuperar a competitividade".

A estratégia baseia-se nas recomendações dos relatórios Draghi e Letta e inclui outras medidas, como a União da Poupança e do Investimento, gigafábricas de inteligência artificial e planos de ação para materiais avançados, tecnologias quânticas e robótica.

Na Cimeira Europeia de Budapeste, em novembro de 2024, Von der Leyen reiterou: "As empresas inovadoras em fase de arranque dizem-nos que é muito complicado para elas entrar na dimensão do mercado único, porque muitas vezes têm de lidar com 27 regulamentos diferentes. Com o 28.º regime, terão acesso a todo o mercado único e terão a oportunidade de crescer".

De Estrasburgo a Turim: uma estratégia coerente

O discurso de Von der Leyen na Semana Tecnológica Italiana, a 3 de outubro, ocorreu algumas semanas após o seu discurso sobre o Estado da União em Estrasburgo, a 10 de setembro de 2025, no qual já tinha anunciado o seu empenho no 28º regime como parte de uma estratégia mais vasta.

Tal como sublinhado no relatório Letta, o mercado único continua incompleto, especialmente em três áreas: finanças, energia e telecomunicações", afirmou em Estrasburgo, anunciando um roteiro para o mercado único até 2028 que inclui o 28º regime, juntamente com a "quinta liberdade para o conhecimento e a inovação".

Conclusão: um desafio existencial para a Europa

Um ano depois de apresentar o seu relatório, Mario Draghi lançou um aviso claro: "O nosso modelo de crescimento está a desaparecer. As vulnerabilidades estão a aumentar. E não existe uma via clara para financiar os investimentos de que necessitamos". Para Draghi, a inação de Bruxelas pode ameaçar a soberania e a competitividade económica da Europa.

O 28º regime representa uma resposta concreta a este desafio. Mas, como afirmou Von der Leyen em Turim, perante os jovens inovadores presentes: "Quantas vezes vos disseram que estavam a apontar demasiado alto? Quantas vezes pensaram que não havia mais nada a fazer? E, no entanto, aqui estão vocês. Não porque nunca tenham falhado, mas porque encontraram sempre a força para voltar ao caminho certo".

A mensagem é clara: a Europa tem o talento, tem o capital, tem as competências. O que lhe falta é um ecossistema integrado que permita que estes ingredientes se combinem e gerem uma inovação competitiva a nível mundial. O 28.º regime é um instrumento para construir este ecossistema.

Quero que o futuro da inteligência artificial seja escrito na Europa", concluiu Von der Leyen em Turim. Quero que a melhor Europa escolha a Europa". A história de Kong, de Marco e Augusto, que tiveram de atravessar o oceano para ver o seu talento reconhecido, não pode continuar a repetir-se. É este o objetivo do 28º regime: permitir que o próximo Kong nasça e cresça aqui, na Europa, na sua casa.

Como afirmou Von der Leyen no seu discurso sobre o Estado da União: "Este deve ser o momento da independência da Europa. Um momento que podemos aproveitar se estivermos unidos". O 28º regime é um dos pilares sobre os quais se pode construir esta independência económica e tecnológica.

Resta saber se a Europa será capaz de passar das palavras aos actos, antes que seja demasiado tarde.

Fontes e referências

Documentos oficiais:

  • Comissão Europeia - Discurso da Presidente Ursula von der Leyen sobre o Estado da União 2025 (10 de setembro de 2025)
  • Mario Draghi - "O futuro da competitividade europeia" (setembro de 2024)
  • Enrico Letta - "Muito mais do que um mercado" - Relatório sobre o Mercado Único Europeu (abril de 2024)
  • Comissão Europeia - Bússola de Competitividade da UE (novembro de 2024)
  • Comissão Europeia - Estratégia da UE para as empresas em fase de arranque e em expansão "Choose Europe to Start and Scaleup" (maio de 2025)

Discursos e conferências:

  • Ursula von der Leyen - Discurso na Semana Tecnológica Italiana, Turim (3 de outubro de 2025)
  • Ursula von der Leyen - Conferência de imprensa na Cimeira Europeia de Budapeste (novembro de 2024)
  • Mario Draghi - Conferência "Um ano após o relatório Draghi", Bruxelas (setembro de 2025)

Iniciativas e movimentos:

Artigos e análises:

  • ANSA - "Lei da inovação e 28.º regime, estratégia da UE para as empresas em fase de arranque em breve" (maio de 2025)
  • Borsa&Finanza - "EU Inc, qual é o projeto do 28º regime fiscal europeu" (novembro de 2024)
  • EconomyUp - "O que é o 28.º regime e qual a sua importância para a inovação empresarial europeia" (fevereiro de 2025)
  • Euractiv - "O 28º Estado virtual: uma ponte para a integração económica europeia segundo Letta" (janeiro de 2025)
  • StartupItalia - "Choose Europe to Start and Scale, how the European Commission's new plan works" (maio de 2025)

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