Como uma lição de planeamento urbano do século XVII pode salvar a sua estratégia de IA
A história que mudou tudo
Imagine a Boston de 1630. Uma jovem colónia puritana que se estende numa península rochosa, onde ainda não existem estradas e o gado vagueia livremente pelos prados e colinas. As vacas, com a sua sabedoria animal pragmática, traçam caminhos naturais seguindo a via de menor resistência: contornando rochedos, evitando pântanos, ligando pastagens e charcos.
Décadas mais tarde, quando os fundadores da cidade se viram confrontados com a necessidade de criar um sistema viário, tomaram uma decisão que lhes pareceu razoável: em vez de desenharem de raiz uma grelha lógica e ordenada, limitaram-se a pavimentar os caminhos já traçados pelo gado.
O resultado? O labirinto caótico de ruas sinuosas que ainda hoje caracteriza a baixa de Boston, onde a Washington Street serpenteia como um rio enlouquecido e onde até o GPS mais sofisticado por vezes desiste em frustração.
Fonte histórica: A história está documentada no poema 'The Calf-Path' de Sam Walter Foss (1858-1911), que conta a história de como os caminhos traçados por um bezerro se tornaram mais tarde as ruas de uma cidade.¹
Quando a eficiência se torna ineficiência
A história de Boston é fascinante porque ilustra na perfeição um paradoxo: o que funciona a nível local e imediato pode revelar-se desastroso a uma escala maior e a longo prazo. As vacas tinham razão em seguir o caminho de menor resistência para os seus objectivos imediatos, mas os seus caminhos não foram concebidos para carroças, carros, camiões ou autocarros urbanos.
A lição é profunda: nem tudo o que se desenvolve organicamente é ótimo para o futuro.
A analogia empresarial: quando os processos se tornam caminhos
Nas explorações agrícolas modernas, os "caminhos das vacas" estão por todo o lado. São os processos que se desenvolveram organicamente ao longo do tempo. Como explica Jim Highsmith: *"No mundo das TI, 'pavimentar caminhos de vacas' significa automatizar um processo comercial tal como ele é, sem pensar demasiado na sua eficácia ou eficiência"².
- O formulário deve ser impresso, assinado, digitalizado e enviado por correio eletrónico
- A reunião semanal que ninguém se lembra porque é que começou, mas que "sempre fizemos assim
- O ficheiro Excel partilhado entre 15 pessoas que serve de "base de dados" da empresa.
- O processo de aprovação que passa por 7 pessoas diferentes, 3 das quais nem sequer sabem porque é que têm de o assinar
Estes processos formaram-se como os caminhos de vaca: seguiram o caminho de menor resistência no momento específico em que nasceram. Mas agora, na era digital, continuar a segui-los pode ser devastador.
A grande tentação: abrir o caminho das vacas
Quando as empresas decidem "digitalizar-se", caem frequentemente na mesma armadilha que os fundadores de Boston. Pegam nos processos existentes e "pavimentam-nos" com tecnologia:
Digitalização: Preparar o caminho
"Sempre preenchemos este formulário à mão? Perfeito, vamos criar um PDF preenchível!"
Isto é digitalização: converter o analógico em digital sem alterar nada de substancial. Como define a Gartner: "A digitalização é o processo de conversão de informação analógica em formato digital. É como pavimentar o caminho da vaca - torna-se mais suave, mas continua a ser tortuoso e ineficaz.
O custo oculto da inércia
Uma empresa de produção que conheço tinha um processo de controlo de qualidade que exigia 14 etapas diferentes, desenvolvidas gradualmente nas décadas de 1980 e 1990. Quando se "digitalizaram", limitaram-se a transferir as 14 etapas para tablets. O processo tornou-se mais rápido, mas continuou a ser fundamentalmente irracional: 8 dessas etapas eram duplicadas ou obsoletas.
A verdadeira transformação: digitalização vs digitalização
Digitalização: projetar a cidade do futuro
A verdadeira digitalização significa fazer o que Boston deveria ter feito: olhar para o objetivo final e conceber de raiz a melhor forma de o alcançar.
De acordo com o glossário da Gartner: "A digitalização é a utilização de tecnologias digitais para alterar um modelo de negócio e proporcionar novas oportunidades de valor e receitas; é o processo de mudança para um negócio digital"⁴.
Exemplos de digitalização efectiva:
- A Netflix não digitalizou o aluguer de vídeos; repensou completamente o entretenimento doméstico
- A Amazon não digitalizou catálogos em papel; reinventou o comércio
A diferença crucial
- Digitalização: "Como é que podemos fazer o que fazemos, mas de forma digital?"
- Digitalização: "O que é que estamos realmente a tentar alcançar e qual é a melhor forma de o conseguir na era digital?"
A IA e a tentação da super-lastralidade
Atualmente, estamos a assistir a uma nova vaga de "pavimentação do caminho das vacas" com inteligência artificial. As empresas estão a pegar em processos ineficientes e a melhorá-los com IA, criando aquilo a que poderíamos chamar "super-lasticidade".
Como refere a Harvard Business Review: "A ideia de reengenharia dos processos empresariais está a regressar, desta vez impulsionada pela inteligência artificial. Na década de 1990, a implementação de sistemas ERP e a Internet permitiram mudanças nos processos de negócios, mas as expectativas de mudanças radicais muitas vezes não foram atendidas. No entanto, a IA permite decisões melhores, mais rápidas e mais automatizadas"⁵.
Exemplos de pavimentação de caminhos de vacas AI:
- Utilizar o ChatGPT para escrever e-mails mais rapidamente num processo de comunicação que requer 12 e-mails para tomar uma decisão simples
- Implementar a IA para analisar relatórios que ninguém lê realmente
- Automatização, com aprendizagem automática, de processos de aprovação que não deveriam existir
O resultado
Os processos ineficientes são agora ineficientes mais rapidamente e com maior precisão.
A metodologia do caminho anti-vaca
1. Obliterar → Integrado → Automatizado
Antes de implementar qualquer tecnologia, siga esta ordem de acordo com a metodologia de Michael Hammer⁶:
Obliterar: Eliminar tudo o que não acrescenta valor real
Integrar: ligar os restantes processos em fluxos lógicos
Automatizar: Só no final, aplicar a tecnologia
Como Hammer escreve: "É altura de deixar de pavimentar caminhos de vacas. Em vez de incorporar processos obsoletos em silício e software, devemos obliterá-los e começar de novo'⁷.
2. A abordagem Greenfield vs. Brownfield
Estes termos, emprestados do planeamento urbano e da engenharia de software, definem duas abordagens radicalmente diferentes⁸:
Brownfield (abrindo caminho):
- Manter a tecnologia existente e acrescentar tecnologia
- Mais rápido a curto prazo
- Preserva as ineficiências
Greenfield (conceção de raiz):
- Começar com um quadro branco
- Mais arriscado mas potencialmente revolucionário
- Permite-lhe tirar o máximo partido das novas possibilidades
Como refere a McKinsey: "Embora 90 por cento das empresas tenham iniciado alguma forma de transformação digital, apenas um terço dos benefícios esperados em termos de receitas foi concretizado"⁹.
3. As perguntas certas
Antes de qualquer implementação tecnológica, pergunte:
- "Porque é que estamos a fazer este ensaio?"
- "O que aconteceria se deixássemos de o fazer?"
- "Se tivéssemos de o conceber hoje a partir do zero, como seria?"
- "Que restrições do passado já não existem?"
Casos de estudo: Quando é vantajoso evitar o caminho
Caso 1: O banco que repensou a concessão de empréstimos
Um banco europeu tinha um processo de aprovação de empréstimos que levava 45 dias e 12 etapas diferentes. Em vez de "digitalizar" o processo existente, reformularam-no completamente:
- Antes: 45 dias, 12 passagens, 73% dos ficheiros aprovados
- Após: 24 horas, 3 passagens, 81% dos ficheiros aprovados
O segredo? Perceberam que 90% dos controlos eram redundantes e que a IA podia avaliar o risco com mais precisão do que 6 gabinetes diferentes.
Caso 2: O hospital que eliminou as filas de espera
Um hospital italiano tinha tempos de espera de quatro horas nas urgências. Em vez de "digitalizarem" o sistema de filas de espera, repensaram completamente o fluxo de doentes:
- Triagem preditiva baseada em IA
- Rotas diferenciadas por tipo
- Monitorização em tempo real das cargas de trabalho
Resultado: tempos de espera reduzidos em 80%, satisfação dos pacientes +60%.
As três armadilhas modernas do Caminho das Vacas
1. A armadilha da familiaridade
"Os nossos empregados estão habituados a isto" é o assassino mais insidioso da inovação. É como dizer que as vacas estão habituadas aos seus trilhos.
2. A armadilha do investimento moderado
"Já investimos tanto neste sistema" ignora o facto de que continuar no caminho errado amplifica o erro.
3. A armadilha da falsa complexidade
"É demasiado complicado mudar tudo" esconde muitas vezes o medo de admitir que o processo atual não faz sentido.
O quadro ANTI-COW para a transformação digital
Analisar- Analisar o resultado pretendido
Não comece com a tecnologia, comece com o objetivo comercial.
Navigate- Navegar para além dos constrangimentos actuais
Pergunte a si próprio: "Se eu fosse uma empresa nascida hoje, como é que resolveria este problema?"
Transformar- Transformar, não Traduzir
Redesenhar os processos para a era digital, e não traduzi-los para o digital.
Implementar- Implementar por fases
Utilizando uma abordagem incremental, mas com uma visão radical.
Verificar- Verificar a eficácia
Medir não só a eficiência, mas também a eficácia global.
Otimizar- Otimizar continuamente
O processo de transformação nunca termina.
Watch- Observação de novos caminhos
Ter cuidado para que não se formem novos "caminhos de vaca" espontâneos.
A IA como arquiteto, não como trabalhador
A inteligência artificial pode ser a melhor ferramenta para pavimentar caminhos de vacas (tornando-os super eficientes, mas fundamentalmente errados) ou o melhor arquiteto para desenhar as cidades do futuro.
Como salienta o Fórum Económico Mundial: "Para atingir todo o seu potencial, a IA deve falar a linguagem dos negócios, deve compreender como o trabalho flui e precisa de inteligência de processo"¹⁰.
A diferença reside na abordagem:
A IA como Trabalhador (Pavimentar o Caminho das Vacas):
- "Como é que podemos utilizar a IA para acelerar este processo?"
- Automatização das actividades existentes
- Melhorias incrementais
IA como arquiteto (planeamento urbano):
- "Como é que podemos repensar completamente este resultado comercial?"
- Redefinição do próprio problema
- Transformação radical
A coragem de demolir
A lição mais profunda da história de Boston não é técnica, mas psicológica: é preciso coragem para admitir que os caminhos que seguimos não são necessariamente os melhores possíveis.
No mundo dos negócios, isto significa:
- Questionar os processos "sagrados
- Aceitar que "sempre fizemos assim" não é justificação
- Investir em mudanças que podem não ter um retorno imediato
- Resistir à tentação da solução rápida
Conclusão: Projetar estradas para o futuro
Atualmente, perante as infinitas possibilidades da IA e da digitalização, temos uma escolha: podemos fazer como os fundadores de Boston e pavimentar os caminhos existentes, ou podemos ter a coragem de projetar as cidades do futuro.
Da próxima vez que ouvir a frase "vamos digitalizar este processo", pare e pergunte: "Estamos a desenhar uma estrada moderna ou estamos a pavimentar um caminho de vacas?"
O futuro pertence àqueles que têm a coragem de sair dos trilhos batidos e desenhar novas estradas. Mesmo que isso signifique admitir que as vacas, por mais sábias que fossem, não eram urbanistas.
"É altura de deixar de pavimentar os caminhos das vacas. Em vez de incorporar processos obsoletos em silício e software, devemos destruí-los e começar de novo. Devemos 'reengenheirar' as nossas empresas: utilizar o poder da moderna tecnologia da informação para redesenhar radicalmente os nossos processos empresariais, de modo a obter melhorias drásticas no seu desempenho." - Michael Hammer, Harvard Business Review, 1990¹¹
Fontes e referências
- Stack Exchange Língua e uso do inglês: https://english.stackexchange.com/questions/44800/what-does-don-t-pave-the-cow-path-mean-in-this-context
- AgileConnection - Pavimentando Caminhos de Vaca: https://www.agileconnection.com/article/paving-cow-paths
- SAP - Digitalização vs. Digitalização: https://www.sap.com/products/erp/digitization-vs-digitalization.html
- SAP - Digitalização vs. Digitalização (definição da Gartner): https://www.sap.com/products/erp/digitization-vs-digitalization.html
- Harvard Business Review - Como a IA está a ajudar as empresas a redesenhar os processos: https://hbr.org/2023/03/how-ai-is-helping-companies-redesign-processes
- The Digital Leader - O seu plano de IA está apenas a preparar o caminho das vacas?: https://thedigitalleader.substack.com/p/is-your-ai-plan-just-paving-the-cow
- Harvard Business Review - Reengenharia do trabalho: não automatizar, obliterar: https://hbr.org/1990/07/reengineering-work-dont-automate-obliterate
- Synoptek - Desenvolvimento de Software Greenfield vs. Brownfield: https://synoptek.com/insights/it-blogs/greenfield-vs-brownfield-software-development/
- McKinsey - Rewired to Outcompete: https://www.mckinsey.com/capabilities/mckinsey-digital/our-insights/rewired-to-outcompete
- Fórum Económico Mundial - Como utilizar a inteligência de processos e a IA para reconectar as empresas: https://www.weforum.org/stories/2024/01/process-intelligent-ai-rewire-business-sustainable-transformation/
- Harvard Business Review - Reengineering Work: Don't Automate, Obliterate (1990): https://hbr.org/1990/07/reengineering-work-dont-automate-obliterate